Classificar a pintura de Kika Hermann, em princípio, dispensaria rótulos fronteiriços entre as tantas escolas de arte. É que nos acostumamos a divisar a obra de um artista de maneira a inseri-la numa espécie de protocolo geográfico da arte – se pudermos dizer assim – em que os sentimentos do criador, com tudo aquilo que este quer representar, restam quase abandonados e imperceptíveis para além de definições, sinceramente, desnecessárias. Precisamos acabar com isso. Para sentir (e não para entender) o trabalho de Kika Hermann, podemos com mais propriedade sentar à frente de um de seus quadros de cores intensas e vibrantes à moda fauvista. E então vamos perceber que não se trata de fauvismo, tão simples e concretamente como se define o movimento que teve em Matisse o seu maior expoente. Antes, num preâmbulo insistente, a artista repete com intensidade a lição acadêmica, na verdade a senda que convida a ser trilhada com esforço, muita paciência e sem pressa, até sentir-se madura o suficiente para expandir a verdadeira linguagem de seu trabalho; em seu caso, abordando os limites evidentemente classificatórios de um fauvismo, mas ao estilo muito particular da artista. Quando Kika me convidou ao seu ateliê, ela não queria uma crítica minha sobre seus quadros. Queria que eu lhe desse aulas de pintura, o que não costumo e não sei fazer. E, ainda que o soubesse, pouco me restaria a acrescentar, pois como pintores figurativos que ambos somos estaríamos no mesmo nível de compreensão sobre um mesmo assunto, e ainda por cima, no meu caso, eu não encontraria a coragem suficiente para propor à artista que mudasse o seu rumo naquilo que ela está a buscar durante tantos anos, e que domina com a invejável maestria que me falta. Quero concluir com isso que cada artista pinta à sua maneira, e ninguém mais o faz de forma igual. Agora falarei sobre a pintura de Kika, vibrante e quase violenta, como a querer preservar o átimo do pensamento, que a qualquer estímulo possa corromper-se ou volatizar-se. Trata-se do drama da criatividade este em que percebemos que os sucessivos momentos contam as horas e os dias do ato da obra, mas que, separadamente, são únicos e indissociáveis entre si. Então, invariavelmente, sucede a sensação de que algo foi perdido durante o processo de difícil, se não de impossível reconstituição. É como tentar unir os cacos de um cristal que se rompeu. É um quebra-cabeças frente ao qual, por vezes, somos tentados a abandonar. Uma pintura nervosa e dramática por excelência, mas, ainda assim, contemplativa do que se encontra ao redor da artista, o reservado mundo de suas lembranças as mais inconscientes, dos cheiros e dos sabores que a vida em seu curso leva a experimentar. Somente aos artistas foi reservada a graça de usufruir com mais acuidade essas hiperestesias, porque, em essência, é delas feita a obra que as reflete. Aparecem aí, entre densas camadas de tinta espatulada, temas variados, em especial a paisagem cuja luz é generosamente distribuída pelo domínio dos contrastes, que se transformam em volume. É uma pintura demorada, feita de camada sobre camada, e ainda assim de rara instantaneidade. Ao conhecer o trabalho de Kika, na tarde em que me convidou ao seu ateliê para que eu lhe ministrasse aulas de pintura, percebi que ainda há pessoas que querem e que podem fazer a boa arte, digna de tantas lições assimiladas e por vezes quase dispensáveis.

A temporada de 2016, da Galeria AZ, e a das artes de Bagé, devem sentir-se privilegiadas pela apresentação da obra única da artista Kika Hermann.

 

Paulo C. Amaral
Artista visual e curador
Da Academia Brasileira de Belas Artes, RJ
Outono de 2016