Vasco Prado completaria 100 anos em 2014. Incompreensível que não tenha recebido as devidas homenagens pelo que representou na história das artes do Rio Grande do Sul e do Brasil. Conhecido como escultor,  sabemos menos de seu desenho, como por vezes recusamos aceitar a evidência de que este é a base da representação do pensamento visual. Crianças se expressam por esta via tão logo se lhes ponham um lápis na mão. E de tal gesto plasmam-se as primeiras formas da criatividade que mais tarde ganhará volume. O desenho foi a alma precursora das esculturas de Vasco Prado. Dizia o artista: “Esculpo durante o dia e desenho à noite.” Sua obra escultórica é evidenciada pela figura humana e pelo cavalo, elementos básicos do imaginário de nosso pampa. Casais apaixonados foi outro tema que perpassou a história da produção artística de Vasco, emprestando-lhe outro tipo de emoção. Nela também comparece o mito do Negrinho do Pastoreio, personagem que Vasco foi buscar em João Simões Lopes Neto e sobre a qual produziu alguns de seus mais belos trabalhos, presentes nesta exposição, que denotam vontade de justiça, a missão libertária deste artista.

Ferramenta básica do registro visual, o desenho favoreceu a Vasco a persistência da memória e a formação do discurso que se revelam contundentes em sua vasta e inconfundível obra.

Esta exposição trata de registros gráficos do artista ao longo de importante período de sua vida criativa, entre os anos 40 e 80, principalmente. Outros perderam-se com o tempo, que a tudo consome, mas foram tais registros a base para as esculturas que viverão na eternidade do bronze e da pedra.

“Eu não copio a natureza. Ela passa por mim e eu devo senti-la a meu modo”, dizia o artista, que soube resumir a expressão de seu pensamento na síntese de elementos gráficos econômicos em que a paisagem do campo não mais é do que o baço pano de fundo de seu teatro visual. Sua obra não situa de pronto o sítio da qual faz parte ou quer representar. Pode ser qualquer parte do mundo. Daí a universalidade que trata das formas reconhecidamente sintéticas.

Seus desenhos contêm o inconfundível volume que precisava levar às esculturas, e deles o artista sempre cuidou com esmero e perfeição, dando-lhes forma e profundidade, mestre que foi na técnica do claro-escuro. Os desenhos de Vasco são por si como quase prontas esculturas. Um evidente exemplo pode ser compreendido através da imagem ( 49 ), produzida em Varsóvia no ano de 1968, na qual figura um casal abraçado.  Suas formas são arredondadas por longos traços circulares que se desenvolvem com natural suavidade, construindo a compleição romântica dos corpos, amalgamando-os num enlace amoroso sem arestas. Este movimento circular é na formação da escultura da figura humana, e em especial em Vasco Prado, o gesto essencial para a sua representação.

 Outra imagem dá conta do simbolismo que norteou a obra de Vasco, a de um casal na intimidade (imagem 52), numa clara alusão ao “O ídolo Eterno”, de Auguste Rodin, artista que causou em Vasco forte impressão e evidente influência. Em 1998, a partir deste desenho, o artista vai produzir uma escultura intitulada “Amantes”, dentre as mais belas de sua autoria. Picasso, a quem Vasco Prado tinha na conta do mais importante artista do século XX, inspirou-lhe muitas imagens, tanto pelo conteúdo quanto pela simplicidade vigorosa e definitiva do traço, como podemos ver em alguns trabalhos desta mostra, em particular as imagens 79, 118 e 120, provavelmente influenciadas pela série Tauromaquia. E como todo artista incansável em busca de modelos consagrados – que são tais mestres a perpetuação da própria arte -, Vasco deu aos seus cavalos e cavaleiros muito da verve de Marino Marini, artista seu contemporâneo, bem como emprestou às suas esculturas os sensuais volumes arredondados de Henry Moore. Assim construiu uma obra própria, no entanto particularíssima pela absorção e aplicação de exemplos felizmente assimilados.

Outras imagens desta exposição nos falam do homem Vasco Prado que coloca num mesmo registro o homem, a mulher, a criança e o cavalo, determinando as fronteiras do seu mundo privado, o território de seu espaço amoroso, por vezes o próprio ateliê.

Artista viajante desde que recebeu da Aliança Francesa uma bolsa de estudos para estudar em Paris (1947-1948) sob a orientação do cubista Fernand Léger e do escultor Étienne Hadju, Vasco Prado registrou em cadernos e folhas as suas andanças pelo continente europeu. Veneza e Atenas aparecem aqui em esboços sobre arquitetura, os quais, numa opinião equivocada, poderiam não iluminar o artista, ou dar-lhe maior motivo às esculturas que produziu, mas que, em verdade, guardaram e reproduziram de tais sítios por onde esteve a essência clássica de sua obra, a fonte estética européia e a face figurativa da qual o artista nunca se afastou. O encontro de Vasco Prado com o gravador Leopoldo Mendez e a convivência no ateliê de gravura da École Nationale des Beaux-Arts forjaram-lhe esta allure do homem que alarga fronteiras em torno de si para pertencer-se ao mundo e à infinita paisagem deste. Isso em parte pode explicar a economia dos desenhos de Vasco, situando-os num cenário não necessariamente local, não de sua própria terra, mas por vezes minimalista e sugestivo do que possa ter outro significado geográfico mais amplo, mais diverso e global.  

A este respeito, pouco após o seu desaparecimento, em 1998, a crítica de arte Angélica de Moraes soube muito bem definir a obra de Vasco Prado ao referir: “Não há nenhuma forma criada por Vasco Prado que não esteja inserida na tradição escultórica universal.” É ainda Angélica de Moraes que, na mesma análise, lembrando o Vasco Prado desenhista e gravador de excelência, escreve: “Suas gravuras e seus desenhos, porém, não podem ser descartados como momentos menores do conjunto de sua obra. Nota-se neles a irresistível vocação do escultor expressa na nitidez dos contornos e na sempre presente sugestão de volume. São testemunhos autônomos da coerência formal que perpassou toda uma caudalosa contribuição estética.”

Fundador do Clube da Gravura, em 1950, junto a Danúbio Gonçalves, Glênio Biachetti, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar (que viriam mais tarde a denominar o lendário Grupo de Bagé), Vasco Prado emprestou prestígio a este movimento, o qual viria ele mesmo a criticar (sem detrimento de sua grande importância), pela forma como nasceu e se manifestou num discurso reacionário fundado em palavras de ordem de cunho comunista. Eram outros tempos e Vasco era o jovem que, se pudesse, transformaria o mundo num ambiente mais justo.

Vasco foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro, pelo qual concorreu a uma cadeira de deputado estadual, sem, entretanto, alcançá-la. Aos poucos, sem renegar suas convicções sobre os direitos do homem, sem deixar de condoer-se com as injustiças humanas (o que justifica em parte sua insistência sobre o tema do Negrinho do Pastoreio, que dizia simbolizar “a Idade Média do Rio Grande”), o artista tomou o rumo da introspecção e do fazer artístico no ateliê silencioso, mas sempre de forma libertária e consciente das diferenças sociais que combateu coerentemente pela extensa obra e pelas poucas, mas definitivas palavras.

Como ilustrador, desenvolveu trabalhos de cunho institucional, como podem ser vistos nos desenhos 23 e 24 ( estudo de baixo relevo para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul ), 57 ( estudo para a grande porta da Capela São Pelegrino, de Caxias do Sul ), 04 e 05 ( estudo para logotipo da empresa Aços Finos Piratini ), 019 ( estudo para logotipo do Clube da Gravura )  e 013 ( estudo para o mausoléu de Brochado da Rocha ). Projetos para azulejaria e fachadas em pastilhas estão presentes nesta mostra, se não de maior amplitude pelo tamanho, fundamental o suficiente para que se entendam os domínios da expressão artística visitados pelo precursor da escultura modernista do Rio Grande do Sul.

Eis as razões desta exposição: revelar um pouco do grafismo de Vasco Prado, pois este grafismo pouco revelado ao público, como se disse antes, é a alma da escultura do artista, modalidade pela qual ele se tornou mais conhecido; homenagear o grande artista universal Vasco Prado, que por seu caráter tímido, por sua postura silente, nunca quis ser homem de aparências e fama, declinou da presença de holofotes, preferindo o anonimato que favoreceu sua obra única.

Paulo C. do Amaral
Curador da exposição